" Mas na profissão, além de amar tem que saber. E o saber leva tempo para crescer."
Rubem Alves

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Retirado do blog: SOS professores:
ORTOGRAFIA: ENSINAR E APRENDER: ARTHUR GOMES DE MORAIS
Se na história da humanidade os sistemas de escrita alfabética surgiram antes das normas ortográficas, algo semelhante ocorre no desenvolvimento individual. A criança inicialmente se apropria do sistema alfabético num processo gradativo, o que o aprendiz nessa fase ainda não domina, por desconhecer é a norma ortográfica. Dada a natureza de convenção social, o conhecimento ortográfico é algo que a criança não pode descobrir sozinha, sem ajuda.
Em algumas situações, as crianças cometem mais erros ao escrever. Geralmente, observamos que, embora consiga vencer dificuldades ortográficas em um ditado ou em um exercício em que se focaliza determinadas dificuldade, nossos alunos cometem muito mais erros quando estão escrevendo textos. Ao registrar um ditado, o aprendiz tem apenas que grafar o texto que escuta da professora, já quando se trata de escrever uma história, ele tem que dar conta de várias exigências ao mesmo tempo: selecionar as idéias que colocará no papel, ordená-las, escolher a forma como expressa-las além de pensar na forma correta de grafar o texto que está compondo.
No dia a dia, os erros de ortografia funcionam como uma fonte de censura e de discriminação, tanto na escola como fora dela. No interior da escola, a questão se torna extremamente grave, porque a competência textual do aluno é confundida com seu rendimento ortográfico: deixando-se impressionar pelos erros que o aprendiz comete, muitos professores ignoram os avanços que ele apresenta em sua capacidade de compor textos.
A ortografia é uma norma, uma convenção social, embora muitas vezes existam regras por trás da forma como se convencionou. Tudo em ortografia é fruto de um acordo social, isto é, tudo foi arbitrado, mesmo que existam regras que justificam por que em determinados casos temos que usar uma letra ou outra. Assim como não se espera que um indivíduo descubra sozinho as leis de trânsito, não há por que esperar que nossos alunos descubram sozinhos a escrita das palavras.
Para conseguir que a criança se interesse em escrever corretamente, precisamos desenvolver no cotidiano escolar uma atitude geral de curiosidade sobre a língua escrita, uma preocupação em sermos eficientes na comunicação das mensagens que produzimos para ser lida, uma atitude de respeito com o leitor de nossos textos. Mas tudo isso pressupõe também outra atitude por parte do mestre: em vez de preocupar em punir os erros, tirando pontos do aluno, creio que precisamos pensar em um novo tipo de ensino, um ensino que trate a ortografia como objeto de reflexão.
Para realizar esse ensino precisamos em primeiro lugar compreender como está organizado esse objeto de conhecimento- a norma ortográfica.

A norma ortográfica do português: o que o aluno pode compreender? O que ele precisa memorizar?

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, aprender ortografia não é só questão de memória. O entendimento do que é regular e do que é irregular em nossa ortografia Me parece fundamental para o professor organizar seu ensino.
Se percebermos que os erros ortográficos têm causas distintas, podemos abraçar a idéia de que a superação de erros diferentes requer estratégias de ensino-aprendizagem diferentes.
Com base na distinção entre regular e irregular, o professor poderá organizar mais claramente seu trabalho, decidindo o que o aluno precisa memorizar e o que ele pode compreender.

Correspondências fonográficas regulares

Entre as relações regulares encontramos três tipos: regulares diretas, regulares contextuais e regulares morfológico-gramaticais.

Regulares diretas: Grupo de relações letra-som que inclui grafias, P, B, T, D, F, e V em palavras como pato, bode ou fivela. É comum as crianças não terem dificuldades para usar as letras quando aprendem as convenções do sistema alfabético. Mas numa etapa inicial, sempre encontramos algumas crianças que cometem trocas entre o P e o B, entre o T e o D etc. Interpreta-se essas trocas pelo fato dos sons em questão serem muito parecidos em sua realização no aparelho fonador. São tecnicamente chamados de “pares mínimos”, porque são produzidos expelindo ar do mesmo modo, no mesmo ponto de articulação, diferindo-se apenas porque em um as cordas vibram enquanto no outro som elas não vibram.
Segue alguns exemplos de atividades para se trabalhar a regularidade direta:
1- Classificar em duas colunas as palavras que tem sons parecidos, fazer a leitura e verificar se alguma palavra está fora do lugar;
2- Pareamento de figuras e palavras com letras que são fontes de confusão;
Olhando bem, não há nada de inovador nesses encaminhamentos, por se tratar de correspondência letra-som em que não existe outra letra que possa se registrar esse som, nesse caso a função do professor é ajudar o aprendiz a analisar fonologicamente as palavras em que está cometendo trocas.


Regulares contextuais: Neste segundo tipo de relação letra-som, também regular é o contexto, dentro da palavra, que vai definir qual letra (ou dígrafo) deverá ser usada. A disputa entre o R e o RR é um bom exemplo do que estamos agora tratando.
Nossa ortografia inclui muitos outros casos de regularidades contextuais. A escrita das vogais nasais e dos ditongos nasais, por exemplo, constitui uma grande fonte de dificuldade para os aprendizes. Isso é compreensível levando em conta que na escrita do português existem cinco modos de marcar a nasalidade.



Essa variedade de alternativas (no sistema alfabético) explica por que, a princípio, as crianças têm tanta dificuldade de adotar as formas corretas.
Embora todas as relações letra-som enfocadas nesta seção sejam regradas pelo contexto, a compreensão destas diferentes regras “contextuais” requer que o aprendiz atente para diferentes aspectos da palavra, em alguns casos ele precisará apenas observar qual letra vem antes ou depois.
Vemos portanto que o aprendizado de regras contextuais diferentes requer do aprendiz modos distintos de raciocinar sobre as palavras. Isso precisa ser considerado quando pensamos em estratégias de ensino que levam nossos alunos a incorporar essas regras de ortografia.
É comum – e lamentável- que muitos alunos chegam aos anos mais avançados com dificuldade de grafar esses casos de regularidades contextuais, porque, nesses caos, a compreensão da regra subjacente permitiria o seu emprego adequado, levando o aluno a gerar, corretamente, a grafia de novas palavras.


Regulares morfológico-gramaticais:
Nestes casos são aspectos ligados à categoria gramatical da palavra que estabelece regra.

Irregularidades: Ao lado das regularidades vistas até agora, encontramos as irregularidades de nossa ortografia. Elas se concentram na escrita:
• do som do S (seguro, cidade, auxilio, cassino, piscina, cresça, giz, força, exceto)
• do som do G ( girafa, jiló)
• do som do Z ( zebu, casa, exame)
• do som do X (enxada, enchente)
Mas que envolvam, ainda, por exemplo:
• o emprego do H (hora, harpa)
• a disputa entre E e I, O e U em sílabas átonas em que não estão no final da palavra ( cigarro, seguro, bonito, tamborim)
• a disputa do L com o LH diante de certos ditongos( Júlio e julho, família e toalha)
Em todos os casos realmente não há regras que ajude o aprendiz. É preciso na dúvida, consultar modelos autorizados (dicionários) e memorizar!
Nós professores podemos ter o bom-senso de ajudar o aluno a investir na memorização das palavras que são de fato importantes, porque aparecem mais quando ele escreve.
Talvez não seja exagerado recordar que também ladainha decorada não é regra. Regra é um principio que intuímos, compreendemos, mesmo que não o saibamos formular com a terminologia própria dos gramáticos. A prática do dia a dia já nos demonstrou quantos alunos decoram certas regras por ladainha mas , por não tê-las compreendido, não podem se beneficiar delas. Com isso aprendemos que internalizar regras não é o mesmo que recebê-las prontas e memorizá-las







Quando começar a ensinar ortografia?
Penso que o ensino sistemático só cabe quando as crianças já estiverem compreendendo o sistema de escrita alfabética. O ensino sistemático que visa à superação de dificuldades.
As situações que descreverei aqui foram organizadas no contexto dos princípios norteadores gerais e dos princípios de encaminhamento didático. Algumas atividades são inspiradas em exercícios tradicionais, reinventados com intenção de propiciar a focalização de questões ortográficas e a conseqüente reflexão dos alunos sobre elas. Outras são mais inovadoras, pressupondo uma ruptura bem evidente com atitudes de “medo do erro” arraigadas em tantos educadores.

Ditado interativo:
Nessa atividade, em vez de aplicar um ditado tradicional, fazemos um novo tipo de ditado, no qual buscamos ensinar a ortografia refletindo sobre o que se está escrevendo. Ditamos à turma um texto conhecido fazendo pausas diversas nas quais convidamos os alunos a focalizarem e discutir certas questões ortográficas previamente selecionadas. A opção por um texto conhecido das crianças não é gratuita, se o texto já foi lido e discutido com os alunos estabelece-se uma unidade de sentido. Durante o ditado o professor para e questiona se há algumas palavras que acharam difícil.

Releitura com focalização:

É um encaminhamento semelhante ao ditado interativo. Durante a releitura de um texto já conhecido, fazemos interrupções para debater certas palavras, lançando questões sobre sua grafia.Ao reler o texto, incentivamos as crianças a focalizar a atenção na grafia das palavras.

Reescrita com transgressão ou correção: Os objetivos dos momentos de reescrita é especialmente refletir sobre as propriedades de nossa norma ortográfica, lançando mão também do recurso de pedir para que escrevam errado de propósito. Assim como nas outras atividades descritas, nossa intenção é discutir com os educandos os acertos e erros que produzem/descobrem. Quando a escola só pede para que transformem o errado em certo contribui para a manutenção dos preconceitos lingüísticos.
Ao enfocar as questões ortográficas, temos defendido a postura de descriminalizar o erro e usá-lo como fonte de explicação, de tomada de consciência, transformando as situações de reescrita em uma via de mão dupla: atuando com os aprendizes indo também do errado para o certo e do certo para o errado, sempre discutindo o que fazemos.

Revisão de texto com foco na orografia: É preciso que os alunos aprendam que a escrita não se resume à primeira versão de um texto: escrever implica vários retornos ao que foi escrito, para aprimorar a primeira versão. A revisão com foco em questões da língua é excelente oportunidade para favorecer a criação de um olhar atento às questões ortográficas e a atitude de preocupação com a escrita correta das palavras.

Uso do dicionário: Vivemos num país onde pouquíssimas pessoas consultam o dicionário no seu dia a dia. Para modificar essa concepção é fundamental desenvolver nos educandos a compreensão que o dicionário é uma fonte de informação e um banco de palavras praticamente insubstituível. A consulta mais freqüente e mais autônoma poderá ser progressivamente implantada entre alunos que já dominam o sistema de escrita alfabética.


Resumo produzido por Gláucia Demarchi
Bibliografia

• Trechos do livro: Ortografia: ensinar e aprender
Artur Gomes de Morais