" Mas na profissão, além de amar tem que saber. E o saber leva tempo para crescer."
Rubem Alves

domingo, 1 de maio de 2011

Alguns desafios da educação infantil

Marita Martins Redin e Fernanda Müller
O desenvolvimento da estética não está separado da ética e pode ser construído, desde cedo, nas relações e espaços-tempos da infância, como contraponto às políticas globalizadoras
A educação infantil pode se constituir em um espaço-tempo de descoberta e criação, não importando o estágio de desenvolvimento e nem a idade das crianças. Há de se resgatar o processo criativo da criança como condição de humanização. Só poderá haver realização humana se considerarmos todas as possibilidades do fazer, do sentir, do pensar, do criar e do transformar produzidos com base na sociedade e na cultura. Precisamos defender e ajudar a construir uma ética humana que dê às crianças o direito de viver com dignidade, mas não somente isso. É necessário ir além: buscar na estética a possibilidade de se tornar um ser original, indivisível, íntegro e belo.

Trabalhar com a ética e com a estética na educação infantil constitui um ato político que vê na sociedade a possibilidade do desenvolvimento das possibilidades múltiplas das crianças e de suas culturas, no sentido de superar as injustiças da realidade. Freire (2000) mostra que a capacidade de intervenção no mundo passa por um processo de aprendizagem que começa na infância, no qual a interferência e a opção do educador fazem-se necessárias. Partindo desses princípios, acreditamos que o desenvolvimento da estética não está separado da ética, podendo ser construído, desde cedo, nas relações e espaços-tempos da infância como contraponto às políticas globalizadoras, estereotipadas e estéreis que interferem nas diferentes culturas e formas de educar. É no currículo, nos microespaços, nas relações interpessoais e nas produções subjetivas e originais que o social pode ser explicitado, trabalhado e constituído como um bem comum. Para tanto, enfatizamos que alguns desafios são fundamentais no trabalho cotidiano da educação infantil.

Resolver problemas não deve ser restrito a um determinado dia da semana. Problemas e idéias não podem ser ignorados e não devem ser desencorajados. A dimensão do tempo é complexa e não pode ser entendida meramente como uma organização de horários. Descoberta e curiosidade são características dos processos humanos, principalmente nos primeiros anos de vida, e devem acontecer o tempo todo. Entendemos, nesse sentido, que o conhecimento é um todo indivisível e que as atividades significativas favorecem o desenvolvimento das múltiplas dimensões humanas. Torna-se um desafio para o educador descobrir que propostas conquistam as crianças, suscitando nelas interesse e alegria, empenho e curiosidade, e envolver todas as linguagens que favoreçam o pensar, o agir, o sentir, o imaginar.
Não existem crianças idênticas, não existe desenvolvimento uniforme e regular. A aprendizagem é um fator complexo, que depende de diversas relações. A troca entre os pares, os semelhantes e os diferentes enriquece o grupo e o sujeito. Crianças podem formar grupos para atividades em comum ou em problemas correlatos, mas os grupos se organizarão em diferentes combinações à medida que as atividades mudarem. Crianças podem agir individualmente e em grupos, aprendendo a se desenvolver de forma autônoma, sem perder de vista a relação com o grupo. Logo, tentar entender as crianças com as quais lidamos é fundamental para uma prática pedagógica significativa. Nada substitui a percepção sensível às necessidades, aos desejos e às expectativas delas em torno das atividades e das propostas. É fundamental saber olhar, ouvir, acompanhar o caminho que elas percorrem. Tentar apreciar as aquisições individuais das crianças, seus processos de descoberta e de desenvolvimento demonstra que o educador as conhece e as respeita.

Entender o dinamismo do conhecimento significa também tomar consciência da própria prática pedagógica. Distinguir o que é preciso ensinar do que as crianças podem descobrir sozinhas é uma grande habilidade. Conhecer os materiais e processos que as ajudarão a aprender faz parte do oficio de educador. O que o educador precisa saber e saber fazer para acompanhá-la na aventura da criação? Tentar dar os materiais e equipamentos indispensáveis para uma atividade, saber para que servem e como funcionam facilita sua interferência para desafiar as crianças a explorar esses materiais e incentivá-las a descobrir outros. Explorar diferentes ambientes pode ser uma oportunidade de desenvolver um trabalho rico e original. Um trabalho de espaço, de plano aberto, ao ar livre, dá maiores possibilidades de exploração. Saber lidar com o inusitado faz parte de um procedimento aberto ao novo, ao diferente, e requer um aprendizado do próprio educador, que não raro está bastante distanciado de sua própria infância. Muitas vezes, basta seguir o caminho apontado pela criança: geralmente ela surpreende, traz novas possibilidades, e mostra-nos o que nem sempre conseguimos ver. Educadores podem tentar novos métodos para se adaptarem às necessidades das crianças.

A educação é um processo contínuo de vida, e, muitas vezes, a condição de não saber pode ser uma base de estímulo para a ação criativa. Aceitar o fato de que as crianças podem criar coisas que os adultos desejariam ter criado ou esperar ver algo que não se tinha visto antes pode ajudar a fortalecer a crença no protagonismo infantil. O pensamento linear e os objetivos racionais limitados da nossa civilização, baseada na autoridade e somente na autoria do adulto, levaram-nos a desconsiderar os aspectos intuitivos das crianças. Não se pode criar mais fronteiras artificiais entre as áreas, os níveis, as etapas, as idades, como nos mostrou por muito tempo a cultura escolar. A sensibilidade não está dividida em caixas separadas no nosso ser, assim como nosso ser é indivisível. A interdependência dos conhecimentos é fundamental para a compreensão da vida. Podemos aproximar do mesmo objeto, da mesma idéia, através de mais de um foco, fazer uma abordagem sobre o conhecimento de diferentes direções. Certas áreas são mais adequadas para que se consiga alcançar certos objetivos do que outras. Aprendemos a acreditar, ao longo de nosso processo de escolarização, que a ciência tende a lidar com o conhecimento racional, e a arte, com a compreensão intuitiva; porém, atualmente não se pode ter isso como verdadeiro, já que não existem fronteiras demarcadas. Mesmo mantendo um campo de conhecimento específico, as diversas áreas entrecruzam-se e formam redes, tramas, que interferem umas nas outras. Quanto menos demarcação houver entre as linguagens, mais possibilidade haverá de novas descobertas. Assim, estará aberto o caminho para a criação. As crianças não podem ser tratadas como um único corpo, com homogeneidade, se acreditarmos que a descoberta e a expressão tendem a ser genuínas.

O desenvolvimento de uma prática pedagógica que propicie a constituição do sujeito estético e, ao mesmo tempo, uma perspectiva estética para os sujeitos, ocorrerá se conseguirmos tomar consciência das nossas referências, quebrar os nossos estereótipos e desatar os nós que impedem nossa aproximação do mundo da infância. A crise dos sentidos presente na sociedade contemporânea tem anulado nossa singularidade e rechaçado nossos sonhos. A educação das crianças pequenas, em uma perspectiva de preservação dos elementos lúdicos, da capacidade de imaginar, de fantasiar, de poetizar o mundo, ainda é um reduto no qual podemos nos apegar. As crianças merecem ser vistas como sujeitos de estética e sujeitos com direitos. Para isso, precisamos mudar nossos paradigmas em relação à educação delas. Uma criança ensina muito. Muitas crianças ensinam muito mais. Basta querer aprender com elas, pegando carona no "foguete" ou no "tapete voador".

Para finalizar e complementar essas idéias, recorremos a dois educadores chilenos, ainda pouco divulgados, mas sábios em suas propostas para o trabalho com as crianças:

"O adulto tem uma tarefa importante com a criança: tornar possível o assombro, valorizando o irreversível de cada vivência. Mantê-la alerta para notar o oportuno de cada etapa. Se não se mantém vigente a atitude de permanente assombro, não se poderá ver o extraordinário, no mais corrente e a grande sabedoria do mais simples e cotidiano." (Saló; Barbuy, 1977)

Marita Martins Redin é mestre e doutoranda em Educação, professora do curso de Pedagogia e de especialização em Educação Infantil da Unisinos.
E-mail: maritam@brturbo.com.br


Fernanda Muller é mestre e doutoranda em Educação.
E-mail: fernanda.muller@gmail.com

REFERÊNCIAS

DUARTE JUNIOR, João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação(do) sensível. Curitiba-PR: Criar Edições Ltda, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

SALÓ; Julia; BARBUY, Santiago. Terra, água, ar, fogo. São Paulo: ECE, 1977.

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